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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Da mitologia do multiculturalismo - II

Paul Gauguin, D'où venons-nous? Qui sommes-nous? Où allons-nous?

OS MULTIMITOS DO MULTICULTURALISMO

de Luís Dolhnikoff

(cont.)

5.

Como já foi dito, “o multiculturalismo é apartheid de esquerda”. Da “esquerda cultural”, pois fruto da contracultura, não do conservadorismo do establishment nem da esquerda tradicional. E apartheid porque, a despeito de suas boas intenções, denota o isolacionismo cultural: tudo vale e tudo tem valor, menos o que é “branco”. Ou seja: o valor de obras de outras origens é dado não pelas obras, mas por sua origem. O que é a essência do apartheid, apenas com o sinal trocado.

No colégio de East Orange, eles deixaram há muito tempo de ler os clássicos. Nunca ouviram falar de Moby Dick, o que dirá lê-lo. Jovens vinham me ver no ano em que me aposentei, dizendo que, para o Mês da História Negra, só leriam uma biografia de algum negro escrita por um negro.[1]

Pois vale a máxima dos multiculturalistas americanos, segundo a qual a cultura ocidental é uma criação de “homens brancos mortos”. Bem, de quem mais poderia ser? Macacos verdes vivos?

Nesse caso, o problema não estaria, incontornavelmente, em macacos nem em verdes, mas em vivos. Pois culturas não são “produtos”, que podem – ou devem – ser desenvolvidos no ano passado para ser consumidos como novidade neste. Ao contrário: “Civilizações são muito lentas e difíceis de construir, apesar de rápidas e fáceis de destruir”.

Não importa: vale o que não for fruto de “homens” (mas de mulheres, gays etc.), “brancos” (mas de qualquer outra cor) ou “mortos” (daí, imagino, o interesse por qualquer artista “performático”).

Quando não for possível omitir os “homens brancos mortos”, que se incluam então outros não-brancos ou não-homens ou não-mortos ao seu lado – a despeito dos fatos. Afinal, como disse o filósofo José Mindlin, “contra argumentos, não há fatos”.

Os eleitos, filme de Philip Kaufman baseado em um romance-reportagem de Tom Wolfe, narra em belas cenas de linguagem realista o essencial dos episódios iniciais da “saga espacial”. Incluindo os duríssimos testes físicos, biológicos, psicológicos e clínicos impostos aos candidatos a heróis (os eleitos do título em português).

Porque, para não nos perdermos em adjetivos, há alguma coisa de verdadeiramente heroico, no sentido grego, em uma viagem inaugural ao espaço. Mesmo que tal viagem inaugural seja, na verdade, o ponto final de um longo acúmulo de conquistas prévias.

Os testes foram especialmente duros em função do absoluto desconhecimento sobre o que se encontraria. Levantavam-se então inúmeras hipóteses sobre o impacto da viagem no organismo e na psique humanos, que em alguns momentos lembram as dúvidas e os temores dos marinheiros de Colombo sobre o que haveria “depois” do horizonte. As duas situações tinham, de fato, muito em comum.

Os russos já haviam estado lá. Ou não? Era o auge da Guerra Fria, e a propaganda, uma das suas armas principais. Mesmo se os filmes mostrando o voo orbital inaugural de Gagárin não fossem falsos, como afirmavam os direitistas e os nacionalistas americanos mais furiosos, isso não ajudava muito, pois os russos não forneceriam nenhuma informação sobre seus êxitos. Ao contrário. Se pudessem, passariam desinformações.

Não havia modelos a seguir. Não havia nada a seguir, senão a longa tradição científico-industrial que levara aqueles homens a poder conceber a viagem e se preparar para ela.

A cada necessidade surgida pelo ineditismo da situação, tinha-se de literalmente inventar uma solução nova. Enquanto inúmeros foguetes de ensaio explodiam sucessivamente nas rampas de lançamento.

O filme como o livro é, assim, uma elegia a uma conquista grupal heroica. Uma conquista da vontade e da técnica. Mais nada.

Uma conquista ocidental. Ou racional, branca, masculina – como todos os personagens do filme.

Durante o próprio ato da vitória, enquanto as estações de rastreamento estabelecem contato com a nave que, afinal, flutua fora da atmosfera, levando a bordo um astronauta solitário, John Glenn, terceiro Homo sapiens a deixar o planeta natal (o segundo fora o americano Alan Shepard, em um voo suborbital de 15 minutos), que extasiado pela beleza desconhecida do que via, tenta traduzi-la em palavras aos que o escutam na superfície, já perto do fim da narrativa, o filme de repente introduz um grupo de aborígenes australianos não-aculturados.

Parados à porta de uma casamata que sustenta um dos grandes radares de rastreamento da missão em pleno deserto australiano, eles perguntam o que é aquilo e para que serve. O rádio-operador da Nasa lhes explica a coisa toda como pode, sem, no entanto, conseguir evitar de transformar tudo numa espécie de lenda imediata: pois é difícil ser técnico, preciso e objetivo utilizando apenas um vocabulário acessível a interlocutores culturalmente tão distantes.

Não importa. Porque os aborígenes, espertíssimos, dão sábios sorrisos sutis antes de se afastar tranquilamente, apoiando-se em seus cajados com ares de quem entendeu tudo muito bem.

Eles acendem em seguida uma espécie de grande fogueira mágica em um lugar ermo, enquanto invocam com cânticos seus deuses. Fagulhas e faíscas então começam a rodopiar freneticamente, e depois a subir, subir e subir, até sair da atmosfera e tranquilamente envolver a nave numa espécie de nuvem de pó de pirlimpimpim luminoso em pleno vácuo. E não é que o herói ocidental, branco e masculino se torna de repente uma espécie de idiota sorridente, olhando para as faíscas aborígenes com mais embevecimento do que dirigira à esplendorosa visão da Terra emergindo gigantesca e azul do fundo infinito da noite idem do Cosmos?

Matam-se assim dois coelhos multiculturais com uma só claquetada. Primeiro, se introduz na narrativa de uma conquista técnico-científica um contraponto “xamânico”, irracional: caso contrário, o filme seria um hino de louvor ao racionalismo, além de um reforço da visão materialista do mundo (pois John Glenn não encontra anjinhos ao atingir o céu), o que não é aceitável. Segundo, “multiculturaliza-se” a conquista do espaço: pois se os brancos podem conquistá-lo, os aborígenes australianos também podem, como não. Caso contrário, a História não seria democrática, nem a realidade “politicamente correta”. Ou vice-versa.

Resta apenas a dúvida de saber se a História é, de fato, correta em qualquer sentido, já que, segundo o próprio filme, parece distribuir tão mal suas dádivas: afinal, os brancos são bem mais estúpidos do que os aborígenes, e isso não parece nada justo. Porque, se não fossem tão estúpidos, não perderiam tanto tempo, esforço, dinheiro e vidas para tentar por um caminho tão longo quanto difícil o que um grupinho de aborígenes sábios resolve facilmente apenas acendendo uma fogueirinha e xamãndo seus deuses.

Sem falar, claro, da burrice intrínseca ao nosso conhecimento do mundo – pois este afirma, segundo duas das leis mais clássicas da mecânica idem, que nenhum corpo pode alterar por si mesmo seu estado de movimento ou de inércia, e que a toda ação corresponde uma reação de força igual e de sentido oposto. Estas são, aliás, as bases teóricas dos foguetes, que portanto não podem subir sozinhos, mas dependem do empuxo proporcionado pela ação reativa ao escape dos gases resultantes da violenta queima de seus combustíveis. Perda de tempo. Pois as fagulhas aborígenes sabem levitar, ou seja, anular inteiramente a gravidade e o atrito do ar, até atingir o espaço.

O multiculturalismo, por outro lado, sabe anular toda objetividade. E não somente em filmes comerciais, mas também em documentários pretensamente sérios – nos quais não faltam antropólogos. E nos quais é habitual se afirmar, quando se trata de narrar a ação “terapêutica” de um pajé dessa ou daquela tribo, que se está assistindo a uma “cura”: “O pajé Tal, como se pode ver, está agora curando o menino...”; “O xamã Xis, depois de sair de seu transe, vai curar a mulher que...”. Pajés e xamãs, quando agem, curam. Logo, curam sempre. Curam inevitavelmente. O que se está esperando para fechar todas as inúteis faculdades de medicina do Ocidente?

6.

Poderíamos, depois, fechar as de história:

Existem pelo menos duas teorias concorrentes relativas à origem das populações nativas americanas. O consenso científico, baseado em inúmeros dados arqueológicos, é que os seres humanos chegaram pela primeira vez às Américas a partir da Ásia, entre 10 e 20 mil anos atrás, cruzando o estreito de Bering. Por outro lado, alguns mitos tradicionais índios sustentam que os povos indígenas sempre viveram nas Américas, desde quando seus ancestrais emergiram à superfície da Terra vindos de um mundo subterrâneo povoado de espíritos. E uma reportagem publicada no New York Times (22 de outubro de 1996) observou que muitos arqueólogos, “oscilando entre seu temperamento científico e sua admiração pela cultura nativa [...] chegaram perto de um relativismo pós-moderno no qual a ciência é simplesmente mais um sistema de crenças”. Por exemplo, Roger Anyon, um arqueólogo britânico que trabalhou entre o povo zuni, foi citado como tendo afirmado que “A ciência é apenas um dentre os muitos modos de conhecer o mundo. [A visão de mundo dos zunis] é simplesmente tão válida quanto o ponto de vista arqueológico sobre o que é a pré-história”. Talvez as afirmações do dr. Anyon tenham sido incorretamente reproduzidas pelo jornalista, porém se ouve esse tipo de afirmação muito frequentemente hoje em dia, e gostaríamos de analisá-la. Note-se primeiramente que a palavra “válida” é ambígua: deverá ser entendida em sentido cognitivo, ou em algum outro sentido? Neste último caso, não temos nenhuma objeção; todavia, a referência a “conhecer o mundo” sugere a primeira hipótese. Ora, tanto na filosofia como na linguagem do cotidiano, distingue-se entre conhecimento (entendido, aproximadamente, como crença verdadeira justificada) e mera crença; eis porque a palavra “conhecimento” tem conotação positiva, enquanto “crença” é neutra. O que, então, Anyon quer dizer com “conhecer o mundo”? Se ele tem em mente a palavra “conhecer” em seu tradicional significado, então sua afirmação é simplesmente falsa: as duas teorias em questão são mutuamente incompatíveis, e por conseguinte não podem ser ambas verdadeiras (nem sequer aproximadamente verdadeiras). Se, por outro lado, ele simplesmente está observando que diferentes povos têm crenças distintas, então sua afirmação é verdadeira (e banal); porém é induzir a erro empregar a palavra “conhecimento”. Mais provavelmente, o arqueólogo muito simplesmente permitiu que suas simpatias políticas e culturais ofuscassem seu raciocínio.[2]

“Simpatias políticas e culturais” por povos distintos são não somente respeitáveis como profundamente louváveis. Não apenas porque a humanidade é constituída por seus povos. Mas também porque, do próprio ponto de vista ocidental contemporâneo, nenhum outro povo ou cultura foi jamais tão condenável por crimes e barbáries como a cultura ocidental.

Seja pelos crimes históricos do cristianismo, os crimes crônicos do colonialismo, do imperialismo e do capitalismo, ou os crimes agudos do nazismo (de certo modo ligados aos do cristianismo, por ser a matriz histórica do antissemitismo europeu). No entanto, simpatias não geram conhecimento. Pois facilmente “ofuscam o raciocínio”:

Quando desafiados, os antropólogos relativistas às vezes negam que exista distinção entre conhecimento (isto é, crença verdadeira justificada) e mera crença, por negar que essas crenças – mesmo crenças cognitivas acerca do mundo exterior – possam ser objetivamente (transculturalmente) verdadeiras ou falsas. Mas é difícil levar a sério tal declaração. Milhões de nativos americanos não morreram realmente no período que se seguiu à invasão europeia? Ou isto é simplesmente uma crença assumida como verdadeira em algumas culturas?[3]

Se, sob o largo e espesso manto do multiculturalismo, isso acontece com a ciência, o que não acontecerá com a arte?

Bem, nas artes plásticas, acontece tudo. Tudo vale. E nesse vale-tudo, nada se distingue. Daí o único critério restante para se julgar a relevância de uma obra ser seu valor de mercado.

Na poesia, emergem coisas como a “etnopoesia” e o orientalismo poético. O orientalismo poético é o que seu nome diz: uma poesia “orientada” para o Oriente, seja por referências ao budismo ou pela adoção de estruturas orientais como o haicai. A “etnopoesia” completa então o quadro das poéticas não-ocidentais, ao relevar a poesia dos povos tribais (com o perdão da rima pobre).

Mesmo se, para encontrá-la, tenha de transformar em poesia aquilo que para, seus próprios autores, é outra coisa. Poesia é uma forma de arte, mito uma forma de ver o mundo – que pode, eventualmente, usar formas próximas às da poesia, como também outras próximas às da prosa. O que importa é a visão de mundo que o mito comporta.

Mas além de hipervalorizada na tradição ocidental (ao menos em termos culturais, pois materialmente os poetas sempre foram os artistas pior remunerados), a verdade é que a poesia, no limite, só existe na tradição ocidental. Pois a poesia nada tem de “natural”, no sentido de ser inevitável ou universal. Se toda cultura e toda tribo tem sua culinária, suas armas, suas ferramentas, sua indumentária e seus cantos, essas cantos não são, porém, poesia.

É em função de sua grande valorização cultural ocidental, em todo caso, que os chamados “etnopoetas” acreditam dever procurá-la, e necessariamente encontrá-la, em todos os lugares. Sem perceber o profundo desrespeito que há nisso. Pois mitos e cantos indígenas não são poemas, mesmo se transmitidos em estruturas formais aparentemente semelhantes – do mesmo modo que provérbios são provérbios, e slogans, slogans, apesar de rimas e ritmos eventuais.

A simpatia multicultural “etnopoética” é, na verdade, arrogância etnocêntrica (apesar da ironia que há nisso): pois crê conceder a tais cantos e mitos um status bastante alto – aquele que detém a poesia na cultura ocidental.

No entanto, ao contrário do que pretende o “democratismo” multiculturalista, arte, ou poesia, não é o que o artista, ou o poeta, assim determina, porque somos animais sociais: o grupo define o significado do que não seja absolutamente pessoal. Poesia, então, é aquilo que uma cultura reconhece como poesia. E apenas uma cultura reconhece a poesia como poesia.

A função social da poesia é o que nós, ocidentais, chamamos de arte. E a arte é a autonomização da função estética. Tal autonomização, no limite, só existe na cultura moderna. Mesmo no Ocidente, durante a Idade Média, a arte, que era necessariamente sacra, era necessariamente sacra porque sua função primária era ser sacra, e não artística. Ou seja, ilustrar passagens bíblicas, representar santos e engrandecer templos.

As famosas máscaras africanas que no início do século XX influenciaram a arte moderna só se tornaram arte ao serem levadas para a Europa, pois foram, na verdade, criadas como objetos rituais. Suas formas, e o próprio fato de existirem, vêm do rito que integravam, não de qualquer conceito artístico. Só é escultura o artefato escultórico cuja função é estética. Os outros têm de se “tornar” esculturas, ao serem postos no pedestal da tradição ocidental de arte.

Só é poesia o artefato poético cuja função é estética. O famoso haicai japonês, portanto, no limite não pode ser considerado uma forma poética. Não por acaso, sua forma e também seus temas obedecem a considerações zen-budistas de “natureza”, movimento e estase – além de irem na contramão da valorização ocidental da criatividade individual. O que resulta em pequenez, neutralidade e banalidade – que ninguém, porém, de fato reconhece, como na fábula da roupa nova do rei ninguém reconhecia sua nudez. Se ali todos se obrigavam a “ver” a roupa exuberante para não ir contra o desejo real, aqui se trata de não afrontar o politicamente correto. Não se pode dizer (ou mesmo perceber) que os principais preceitos poéticos japoneses resultam em pequenos “poemas” banais. Mesmo que seja o que de fato pretendem ser.[4]

(...)


[1] Philip Roth, A marca humana, São Paulo, Cia das Letras, 2002, p. 137.

[2] Alan Sokal e Jean Bricmont, opus cit., p. 214.

[3] Ibidem.

[4] No caso mais notório de se ver o que se acredita dever ser visto, Haroldo de Campos traduziu o mais famoso haicai de Bashô, por sua vez o maior haicaísta japonês, com a “palavra-valise à maneira joyceana, saltomba (fragmentada visualmente por um recurso à la cummings de apostrofação, salt’ / tomba)” (A arte no horizonte do provável, São Paulo, Perspectiva, 1977, p. 62). Tudo para “traduzir” o verbo tobikomu, mergulhar, corrente em japonês. Pois o que Bashô escreveu foi que uma rã mergulha, numa simplicidade chã. São do próprio Bashô, aliás, estas palavras, que parecem estranhamente predestinadas a criticar seu futuro tradutor brasileiro: “Na minha concepção, um bom haicai é aquele em que tanto a forma como a junção de suas partes parecem tão leves quanto um rio raso fluindo sobre um leito arenoso” (Hisamatsu Sen’Ichi, “The vocabulary of japanese aesthetics”, in Paulo Franchetti, Elza Taeko Doi e Luiz Dantas, Haikai, Campinas, Unicamp, 1990, p. 22).

3 comentários:

RioD'oiro disse...

Os eleitos: The right stuff

http://en.wikipedia.org/wiki/The_Right_Stuff_%28film%29

.

RioD'oiro disse...

Mais um excelente texto de referência.

José Damião disse...

é cada rolo de papel higienico