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sábado, 29 de outubro de 2011

Convocados pela crise*

No Blasfémias:

Os funcionários públicos e os empresários vieram para a ribalta. De ambos espera-se o mesmo: que paguem a crise. Os primeiros ganhando menos. Os segundos investindo mais. Comecemos pelos empresários. Não há como uma crise para que o país se volte para o sector privado e lhe pergunte pelos lucros, pelos investimentos e pelos postos de trabalho. Todos aqueles políticos, sociólogos e legisladores que nos tempos de abastança olham sobranceiramente para o sector privado como se este estivesse contaminado pelo princípio do lucro, que inventam dezenas de taxas, licenças, certificações e comprovativos que mantenham sob a rédea estatal a actividade económica, uma vez chegada a crise mostram-se despeitados pelo facto de os privados não estarem a gerar riqueza. Como as empresas privadas não nascem assim por invectiva do pensamento mágico, as fases seguinte destes estatistas à beira de um ataque de nervos pelo decréscimo do dinheiro que sustenta aqueles serviços ditos gratuitos e projectos intervencionistas tanto do seu agrado passa, em primeiro lugar, por sugerir aos empresários que invistam em projectos da rentabilidade tão óbvia mas tão óbvia que só apetece perguntar àqueles  que assim falam porque não aplicam eles mesmos as suas poupanças em tais empreendimentos. Em segundo lugar vem a acusação de que o governo não tem um plano que faça crescer a economia ou que tendo-o ele não funciona (note-se que nos dezanove governos constitucionais da democracia e nos seis governos provisórios de tutela militar não houve um executivo que no seu programa não se propusesse apoiar o crescimento económico e que para esse apoio não tivesse um plano de crescimento. E vê-se onde chegámos!). Por terceiro e último entra-se na fase do desespero: acusam-se os empresários portugueses de serem dos mais atrasados e menos qualificados da Europa e de sobretudo parecerem destituídos de ambição, como se se tivessem conformado com o que têm. Às vezes a zanga é tanta que quase se é levado a acreditar que há quem se sinta tentado a adaptar a figura pretérita dos trabalhos forçados à dos empresários forçados.
 
Curiosamente, enquanto na crise se sugere, implora e exige aos empresários que sejam empresários, que sff tenham lucros milionários e que constituam grandes grupos económicos, aos funcionários públicos pede-se-lhes que se esqueçam que o são. Coisa absolutamente irrealista pois sendo o despedimento uma impossibilidade técnica na função pública como poderá alguém esquecer que é uma das raras coisas que além de ser para toda a vida ainda lhe garante um estatuto relativamente privilegiado?

Convém recordar que os funcionários públicos têm mais dias de férias do que os trabalhadores do sector privado; trabalham menos horas e só há três anos foi possível que o sistema de cálculo das suas pensões passasse a ser associado à esperança média de vida. Quanto à idade da reforma, que era de 62 anos para os funcionários públicos e 65 para o sector privado, foi necessário que chegassem os PEC e seguidamente a troika para que se acelerasse o calendário de convergência entre os dois sectores. Ser funcionário público é ainda particularmente vantajoso para quem tem menos habilitações pois ganha mais do que se estivesse no sector privado.  Claro que isto não teria relevância de maior, caso os funcionários em funções públicas não se contassem pelas centenas de milhar e muito particularmente se o pagamento dos seus ordenados não dependesse do esforço dos contribuintes. Estas duas circunstâncias garantem privilégios e protagonismo aos funcionários públicos naqueles momentos em que os governos acreditam ou querem fazer acreditar que tudo vai bem – em 2009, quando o sector privado já estava a apertar o cinto, os funcionários públicos tiveram aumentos de 2,9% – mas torna-os no bode expiatório da questão quando o dinheiro acaba. Nesses momentos o que anteriormente era banal ganha foro de escândalo. Veja-se, por exemplo, o que sucedeu aquando da divulgação dos números do absentismo de 2010 nas três principais direcções regionais de educação: as 750 pessoas que ali trabalhavam registaram seis mil dias de ausência ao trabalho. Nesse mesmo ano, 2010, os encargos com o pessoal nestas três estruturas estatais ultrapassaram os 23 milhões de euros, dos quais 57 mil em prémios de desempenho. Apesar dos seis mil dias de ausência ao trabalho parecerem um escândalo em 2011, a verdade é que nos anos anteriores o absentismo até fora superior. Só que então tudo isso e muito mais aparecia se não como normal pelo menos como uma natural fatalidade.

Para cúmulo do estereótipo os funcionários em funções públicas chegam a esta crise representados por delegados sindicais que são eles mesmos um grupo fechado, constituído por pessoas que se mantêm há anos e anos afectos a funções sindicais, nas mais das vezes completamente desligados daqueles que dizem representar e com um discurso que é invariavelmente o mesmo: os trabalhadores estão sempre a perder qualquer coisa e estão sempre a ser vítimas de mais um ataque. Uma mudança de instalações, uma tecnologia diferente ou a mais leve reformulação dos serviços são sempre apresentadas como uma ameaça aos direitos dos trabalhadores. Já a arrogância do poder não os preocupa desde que se mantenha o que designam como direitos e por isso não vimos os sindicatos dos professores questionando a legitimidade do  Governo Regional da Madeira para avaliar administrativamente os professores, pela simples razão de que nota atribuída foi Bom.

É fácil concluir que toda esta discussão sobre o que se espera dos empresários e dos funcionários públicos devia ter sido possível antes, e não estar a ser feita agora na urgência de arranjar o dinheiro que não existe. (Cabe perguntar se sem esse sentimento de urgência seria possível mudar alguma coisa: por exemplo, o Tribunal Constitucional que em 2010 aprovou sem mais os cortes aos salários dos funcionários públicos, em 2002 considerou inconstitucional a proposta da então ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, para penalizar as reformas antecipadas). Mas já que foi assim que aconteceu não esqueçamos uma vez terminado este calvário que não somos um país rico e que ninguém nos paga não só as crises mas também as consequências do que inscrevemos no “Diário da República”, sejam direitos que não se podem sustentar sejam os planos dos nossos governos para fazer Portugal crescer.

*PÚBLICO

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